(Rubem Alves)
Era uma tarde fresca. Estávamos assentados à sombra de um flamboyant na casa do meu primo Tatão, lá em Boa Esperança, jogando conversa fora. Gozado, pela primeira vez essa expressão “jogar conversa fora” chamou a minha atenção. Joga-se fora aquilo que não é para ser guardado. Não se diz “jogar conversa fora” de conversas de negócios entre executivos. Nas conversas de executivos nada é para ser jogado fora. Cada palavra vale dinheiro. Jogar conversa fora é uma brincadeira parecida com soprar bolhas de sabão. As bolhas de sabão são de curta duração. Mas são tão divertidas... Vão-se umas, sopram-se outras. Nietzsche e Alberto Caeeiro faziam filosofia e poesia contemplando as crianças entretidas nessa brincadeira. Quando jogamos conversa fora voltamos a ser crianças: sopramos bolhas com palavras, bolhas que serão logo esquecidas. Pois é. Lá estávamos nós quando, de repente, comecei a sentir um cheiro que me levou para dias da minha infância. A imagem que aquele cheiro me trouxe era tão doida que eu não disse nada. Achei que iriam se rir de mim. Foi quando uma das filhas do Tatão interrompeu a conversa e disse com aquela música pachorrenta do falar mineiro: “Uái, gente, que cheiro de quando estão matando porco...” Ah! Era isso mesmo que estava na minha cabeça. De alguma forma aquele cheiro me levou de volta a uma cena que estava enterrada na minha memória. Quando se mata porco há um cheiro característico: da lenha, do porco morto sendo chamuscado no fogo, do couro do bicho sendo amolecido pela água fervente.
Assim são as imagens poéticas: elas têm o poder de ir lá no fundo da alma, onde moram os esquecimentos. E quando um desses esquecimentos acorda, a gente sente um estremeção no corpo. Essa é a missão da poesia: recuperar os pedaços perdidos de nós.
Pois isso está acontecendo comigo agora, estou sendo visitado por uma imagem emissária do meu passado. Ela me aparece e eu me comovo. Se me comovo é porque eu me pareço com ela. É a imagem de um caminho. Haverá alguma razão para esse aparecimento? Acho que sim. Vou completar 71 anos. Olho para trás, olho para frente... Vejo o meu caminho...
Tenho, na minha pequena sala de estar, uma tela grande, pintada pela. Marli, mãe da Thais: um caminho no meio da mata. Não se sabe para onde vai porque ele desaparece numa curva. Eu recebi essa tela de presente, depois que da. Marli ficou encantada. Eu me assento no sofá e fico olhando para ela – coisa que não faço com famosas reproduções de Dali e Brueghel. O caminho me faz pensar. Pensar sobre mim mesmo. Penso sobre o caminho que trilhei. Penso sobre o caminho que trilharei, depois da curva...
Sinto o que disse Robert Frost num dos seus poemas: “Duas trilhas bifurcavam num bosque de outono, e eu, viajante solitário, triste por não poder andar por ambos, por longo tempo lá fiquei olhando até onde desapareciam na folhagem. Duas trilhas num bosque bifurcavam e eu – eu fui pela menos pisada, e isso fez toda a diferença”.
Acho que eu fiz o mesmo: preferi sempre a trilha onde poucos andavam. Desde menino eu amei estar sozinho. Gostava de ficar só com os meus pensamentos. Lembro-me do sobradão colonial do meu avô onde passava férias. Eu acordava – todos estavam ainda dormindo – vestia-me e, silenciosamente, para não despertar os adultos, caminhava pelo corredor onde estava o meu quarto, atravessava a sala de jantar, entrava num outro corredor que conduzia à sala de visitas, tomava a escada, eram três lances até o térreo, entrava num corredor que conduzia à enorme porta de entrada da casa, fechada com barras de ferro. Eu retirava as barras, abria a porta, e saia. O sol estava começando a nascer. Lá estava a praça quase deserta com suas tipuanas, ipês e palmeiras. Assentava-me então num banco e ficava ouvindo longamente o canto dos pássaros pretos, sozinho.
A trilha menos pisada é a trilha dos hereges, dos bufões, dos poetas, dos profetas. Esses foram sempre meus melhores amigos. T.S. Eliot tem um aforismo que diz: “Numa terra de fugitivos quem anda na direção contrária parece estar fugindo.” Não sei se a minha era uma terra de fugitivos. Só sei que desde pequeno eu andava ao contrário. Lembro-me de quando vivi numa cidade do interior de Minas onde todo mundo era católico. Eu era protestante. Quando o padre com suas vestes negras chegava ao Grupo e chamava as crianças para a confissão eu tinha de me levantar e dizer: “Eu não vou...” E assim tem sido, através da minha vida. Nunca consegui pertencer a um rebanho fosse qual fosse o seu nome: igreja, clube, partido, escola de pensamento, grupo profissional.
Agora, faz poucos meses, fiquei conhecendo o poeta José Régio. Vou transcrever alguns trechos do seu poema “Cântico Negro”. “’Vem por aqui’ – dizem-me alguns com olhos doces, estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom que eu os ouvisse quando me dizem: ‘Vem por aqui’! Eu olho-os com olhos lassos, ( há nos meus olhos ironias e cansaços) e cruzo o braços, e nunca vou por ali. Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos... Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.Ide!Tende estradas, tendes jardins, tendes canteiros, tendes pátrias tendes tetos, e tendes regras, e tratados, e filósofos e sábios. Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, e sinto espuma, e sangue e cânticos nos meus lábios... Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Que ninguém me diga: ‘vem por aqui’! Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí!”
Mas há uma contradição que bem percebo. Não vou pelos caminhos dos outros. Mas ao escrever eu não estarei convidando os que me lêem a seguir o meu caminho? Como se eu lhes dissesse: “Vem por aqui!!” Não, não, não! Não quero transformar minhas caminhadas solitárias em procissões ou comícios. Não quero seguidores. Quero continuar a caminhar sozinho. É bom caminhar sozinho. E o caminhar sozinho não faz caminhos para os outros. O meu caminho é só meu. “Caminhante, não há caminhos”, dizia Antônio Machado. “Os caminhos se fazem ao caminhar...” Cada um tem de fazer o seu próprio caminho. A alma é o caminho. É preciso encontrar esse caminho. Estranho, porque é um caminho que não leva a nada. Mas os cenários à beira do caminho são maravilhosos. Assim, só posso repetir o conselho de D. Juan, o bruxo: “Todos os caminhos conduzem ao mesmo fim. Escolhe, portanto, o caminho do amor”.
Assim são as imagens poéticas: elas têm o poder de ir lá no fundo da alma, onde moram os esquecimentos. E quando um desses esquecimentos acorda, a gente sente um estremeção no corpo. Essa é a missão da poesia: recuperar os pedaços perdidos de nós.
Pois isso está acontecendo comigo agora, estou sendo visitado por uma imagem emissária do meu passado. Ela me aparece e eu me comovo. Se me comovo é porque eu me pareço com ela. É a imagem de um caminho. Haverá alguma razão para esse aparecimento? Acho que sim. Vou completar 71 anos. Olho para trás, olho para frente... Vejo o meu caminho...
Tenho, na minha pequena sala de estar, uma tela grande, pintada pela. Marli, mãe da Thais: um caminho no meio da mata. Não se sabe para onde vai porque ele desaparece numa curva. Eu recebi essa tela de presente, depois que da. Marli ficou encantada. Eu me assento no sofá e fico olhando para ela – coisa que não faço com famosas reproduções de Dali e Brueghel. O caminho me faz pensar. Pensar sobre mim mesmo. Penso sobre o caminho que trilhei. Penso sobre o caminho que trilharei, depois da curva...
Sinto o que disse Robert Frost num dos seus poemas: “Duas trilhas bifurcavam num bosque de outono, e eu, viajante solitário, triste por não poder andar por ambos, por longo tempo lá fiquei olhando até onde desapareciam na folhagem. Duas trilhas num bosque bifurcavam e eu – eu fui pela menos pisada, e isso fez toda a diferença”.
Acho que eu fiz o mesmo: preferi sempre a trilha onde poucos andavam. Desde menino eu amei estar sozinho. Gostava de ficar só com os meus pensamentos. Lembro-me do sobradão colonial do meu avô onde passava férias. Eu acordava – todos estavam ainda dormindo – vestia-me e, silenciosamente, para não despertar os adultos, caminhava pelo corredor onde estava o meu quarto, atravessava a sala de jantar, entrava num outro corredor que conduzia à sala de visitas, tomava a escada, eram três lances até o térreo, entrava num corredor que conduzia à enorme porta de entrada da casa, fechada com barras de ferro. Eu retirava as barras, abria a porta, e saia. O sol estava começando a nascer. Lá estava a praça quase deserta com suas tipuanas, ipês e palmeiras. Assentava-me então num banco e ficava ouvindo longamente o canto dos pássaros pretos, sozinho.
A trilha menos pisada é a trilha dos hereges, dos bufões, dos poetas, dos profetas. Esses foram sempre meus melhores amigos. T.S. Eliot tem um aforismo que diz: “Numa terra de fugitivos quem anda na direção contrária parece estar fugindo.” Não sei se a minha era uma terra de fugitivos. Só sei que desde pequeno eu andava ao contrário. Lembro-me de quando vivi numa cidade do interior de Minas onde todo mundo era católico. Eu era protestante. Quando o padre com suas vestes negras chegava ao Grupo e chamava as crianças para a confissão eu tinha de me levantar e dizer: “Eu não vou...” E assim tem sido, através da minha vida. Nunca consegui pertencer a um rebanho fosse qual fosse o seu nome: igreja, clube, partido, escola de pensamento, grupo profissional.
Agora, faz poucos meses, fiquei conhecendo o poeta José Régio. Vou transcrever alguns trechos do seu poema “Cântico Negro”. “’Vem por aqui’ – dizem-me alguns com olhos doces, estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom que eu os ouvisse quando me dizem: ‘Vem por aqui’! Eu olho-os com olhos lassos, ( há nos meus olhos ironias e cansaços) e cruzo o braços, e nunca vou por ali. Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos... Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.Ide!Tende estradas, tendes jardins, tendes canteiros, tendes pátrias tendes tetos, e tendes regras, e tratados, e filósofos e sábios. Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, e sinto espuma, e sangue e cânticos nos meus lábios... Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Que ninguém me diga: ‘vem por aqui’! Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí!”
Mas há uma contradição que bem percebo. Não vou pelos caminhos dos outros. Mas ao escrever eu não estarei convidando os que me lêem a seguir o meu caminho? Como se eu lhes dissesse: “Vem por aqui!!” Não, não, não! Não quero transformar minhas caminhadas solitárias em procissões ou comícios. Não quero seguidores. Quero continuar a caminhar sozinho. É bom caminhar sozinho. E o caminhar sozinho não faz caminhos para os outros. O meu caminho é só meu. “Caminhante, não há caminhos”, dizia Antônio Machado. “Os caminhos se fazem ao caminhar...” Cada um tem de fazer o seu próprio caminho. A alma é o caminho. É preciso encontrar esse caminho. Estranho, porque é um caminho que não leva a nada. Mas os cenários à beira do caminho são maravilhosos. Assim, só posso repetir o conselho de D. Juan, o bruxo: “Todos os caminhos conduzem ao mesmo fim. Escolhe, portanto, o caminho do amor”.
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